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DAC

Déficit de autoridade comunicativa

Tomos nós em algum nível, temos déficit de autoridade comunicativa. Porém o nível que nos encontramos hoje em dia ultrapassou os limites individuais, tornando-se quase uma regra de comunicação desenfreada, propositalmente distante da verdade do indivíduo e seu contexto. Propositalmente? Sim, enquanto forma induzida de pertencimento a algo maior, mas infelizmente, totalmente inconsciente para o indivíduo. É ai que mora o problema. Somos em grande maioria, em diferentes níveis e de forma inconsciente, replicantes abduzidos, impulsionados pela necessidade de adequação.

Multidão de pessoas

O déficit de autoridade comunicativa está cada vez mais presente e sua disseminação fica mais acelerada a cada ano que passa. De forma geral, veio se acentuando radicalmente ao longo das gerações. E porquê? Creio que você já saiba, mas talvez nunca tenha parado pra pensar a respeito.

Vamos lembrar que todos já fomos crianças e adolescentes. Quando caminhamos pra traz no tempo, nos deparamos com uma educação cada vez mais rígida e uma constante tentativa de reprimir e podar a expressão da criança. Lembre de você! Com raras exceções, quanto mais velho você for, menos expressão ativa no mundo você podia ter na sua infância. Antigamente, a criança e o adolescente tinham muito menos importância. Além de não poderem dar pitaco em nada, eram invisíveis no cenário social e econômico, aquele que diz respeito a girar a roda, a movimentar a máquina da economia. Lembrando que o termo adolescente só veio aparecer no final do sec XIX e recebeu um olhar social apenas no início do sec XX.

Pra você que lembra da sua infância, vamos comparar com hoje?

Hoje as crianças e adolescentes ajudam a girar a engrenagem. As estratégias de marketing para sedução do público infanto-juvenil estão em todas as áreas, tanto no mundo físico como no digital, estimulando seu prazer com cores, sabores, formas e realidades paralelas que, de longe, são muito mais atraentes que a realidade de suas vidas. A criança é influenciada por tantas estratégias mercadológica de consumo desenfreado, que sua condição psíquica não dá conta, e por mais que os pais se esforcem para suprir suas vontades, nunca será suficiente.

Crianças, em, indoor, pátio recreio

Diante destas diferenças gritantes, e passeando um pouco pelo tempo, podemos entender a jornada de nascimento e crescimento do déficit de autoridade comunicativa.

Lá atrás, no início do séc. XX, temos relatos suficientes pra saber que a educação infantil frustrava mais, era mais rígida em relação às obrigações e bons costumes, e também separava radicalmente o universo adulto dos direitos das crianças e adolescentes.  A imposição de regras era mais intensa e os limites eram claros e bem delineados. Quanto aos direitos, bem, não era recomendável na época que se falasse sobre isso. Tão lenta foi a evolução do tema, que somente em 20 de novembro de 1959, na Assembleia Geral das Nações Unidas, é que representantes de centenas de países aprovaram a Declaração dos Direitos da Criança, a qual foi adaptada da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Usando este cenário, vamos esclarecer alguns pontos sobre a natureza da imposição e suas consequências, pois é o que nos interessa pra entendermos o nascimento e crescimento do déficit de autoridade comunicativa.

Como gosto de dizer, definir regras e limites, seja no que for, tem prioritariamente quatro vias, duas pra quem impõe e duas pra quem recebe. Não que sejam as únicas, mas são as principais. Aqui vou citar de forma bem resumida, apenas o ponto de vista de quem é regrado ou limitado pelo outro, que é o que precisamos para contextualizar nosso tema. Mas fica o convite à leitura do artigo “as 4 vias de conexão da imposição” a quem quiser conhecer o assunto por ambos os lados de forma mais detalhada.

Seguindo, vamos então analisar as duas vias regentes para quem sofre algum tipo de imposição.

                Primeiro, o óbvio desagrado que toda imposição gera em qualquer ser humano medianamente sensato. A imposição liga o circuito de defesa da integridade e faz com que cresça imediatamente a vontade de fazer o contrário. Sempre dou este exemplo. É algo que costumava exercitar em meus workshops. Explico: Ao ver um aluno se dirigindo ao bebedouro eu dizia, num tom mais forte, como dando uma ordem:

- Fulano, eu gostaria que você bebesse água! Pode ser?

As reações eram diferentes fisicamente, mas sempre semelhantes no que diz respeito às sensações observadas. Passado o trote e as risadas, eu perguntava qual a sensação e, vejam, a resposta era sempre a mesma. Todos diziam que apesar da sede que os levava ao bebedouro, tiveram vontade de parar e desistir da água só pra não dar o braço a torcer e se dobrar a uma ordem. É o que acontece naturalmente com o corpo na defesa automática de sua integridade. Esta é a primeira sensação observada.

             

 Já a segunda sensação é um tanto mais complexa. Independente da revolta gerada e do planejamento de como burlar as regras, o que a criança percebe, é a contrapartida de que dentro das 4 linhas impostas, ela estará como dizem hoje, “de boa”. Mesmo que para muitos a guerra interna e a revolta predominem e nunca cessem, pois obedecer significa vender a alma, é sabido que, ao fazê-lo, também evitam problemas, ganham aliados e podem conquistar regalias. É aí que começa um jogo de xadrez na tentativa de realizar o que é proibido.

Dá-se início a batalha por conquista territorial e a criança aprende rápido. Quanto mais aceitar a realidade, mais terá condições de criar manobras para burlá-la e realizar suas vontades não permitidas. Ao contrário, quanto mais revolta e ressentimento demonstrados, mais as regras apertam. Faz parte do jogo e permite que a realidade seja o tabuleiro. Sim, a realidade vivida sem máscaras, como se diz, nua e crua.

No início do século XX, quando famílias definiam regras, se referenciavam muito mais pela disciplina da cultura vigente do que por qualquer conhecimento pedagógico. Não que hoje seja muito diferente. Em primeiro lugar, o que normalmente tinham em mente era evitar problemas que não as tornassem mal vistas socialmente em seu meio. Isto, até certo ponto, era tão ou mais importante do que o próprio bem estar emocional e físico da criança. Digo até certo ponto, pois é claro que os pais se importavam, mas as exigências estavam mais baseado no conceito cultural da época, no que era ou não aceito em sociedade, do que em cuidados propriamente ditos. Quer um exemplo? Lembre da palmatória. Ao que parece só deixou de ser usada no Brasil em meados do século XX.

As regras mais rígidas, queira ou não, acabavam gerando como efeito colateral crianças mais inteiradas com seu papel, que assumiam sua realidade infanto-juvenil com menos constrangimentos e amarras. Uma criança proibida de usar, fazer ou ter a, b ou c, sabia que as outras crianças, com raras exceções, também estariam na mesma praia, e de certa forma, sob as mesmas regras. Assim pedia a cultura e os costumes.

Eram crianças, obedecendo como tal, seguindo regras como tal, brincando e aprontando como tal. Não digo que era mais fácil ou difícil ser criança naqueles tempos, mas afirmo que seu papel, de modo geral era mais simples de ser identificado por todos, inclusive por eles. O que se pode dizer, é que trazia certo conforto no sentido de pertencimento e realidade cotidiana, ainda mais acentuado, se compararmos com os dias de hoje, onde a realidade é preferivelmente substituída, pois não é interessante,  e o pertencimento varia na velocidade dos modismos e redes sociais.

Além desta maior condição de proximidade com a realidade, as constantes frustrações exigiam mais aceitação, ou mais espera, ou ainda melhor, estimulavam o interesse no aperfeiçoamento. Tudo oferecia condições mais propícias ao amadurecimento, e menos atraentes aos carentes, ressentidos e revoltados.

Mesas da sala de aula do aluno

Viviam, bem ou mal, de forma diferente de hoje, quando passaram a se preocupar se seu iphone é 10 e o do amigo é 12, se seu Playstation é 4 ou 5 ou se está bem cotado nas redes sociais, sendo que se não se reinventar com uma imagem adequada ainda corre o risco de ser cancelado.

Não importa aqui o que é melhor ou pior, mas sim o quanto o contato com a realidade cotidiana era intenso, importante, proveitoso e parte dos valores e o quanto hoje não é!

Então se agora viermos de lá pra cá no tempo, vemos claramente que pouco a pouco fomos treinados a nos distanciar da complexa realidade cotidiana e criar um mundo baseado nos iguais, referenciado por nosso próprio umbigo, por nosso próprio estado de carência e por nossa necessidade de revolta com a imperfeição não atingida pelo outros.

Eu nasci no final dos anos 60, percebi e percebo até hoje claramente as diferenças. Não é novidade. Está estampado na nossa cara. Menos limites, menos regras e menos rigidez. Esta percepção não significa que sou contra as mudanças culturais, pelo contrário, sou um liberal, apenas aponto algumas consequências, que sinto precisarem ser vistas com cuidado.

Crianças sentem intensamente menos necessidade de confronto com a realidade e, portanto, perdem a capacidade de entendimento do contexto em que estão inseridas. Já não é mais preciso criar jogos com super manobras inteligentes para jogar com a família e conquistar seu espaço. Basta reclamar e bater o pé pra ter o que se quer.

Também os esforços pra se evitar a frustração são cada vez maiores. A consequência imediata: A criança ou adolescente passa a preferir reclamação ao invés de resolução. Passa a preferir ressentimento ao invés de aperfeiçoamento. Diante de um problema, é preferível reclamar e responsabilizar o outro a procurar uma solução. Diante de algo que deu errado é preferível se vitimizar ao invés de buscar aperfeiçoamento e esperar o momento de uma nova tentativa.

Pense comigo – Será que hoje em dia isto se vê apenas em crianças e adolescentes? Bem, sabemos a resposta.

Sei que a família, a escola, o governo, as organizações sociais, enfim, a sociedade vem se empenhando há tempos no sentido de produzir o tal conforto psicológico, aquela cerca de proteção ao ato de existir em sociedade. Daí a gente pode entender porque é fácil encontrar pessoas de 30, 35 anos de idade agindo como adolescentes e, portanto, com certa falta de habilidade em lidar com a realidade e que mesmo percebendo a necessidade de amadurecimento, tem dificuldade em considerar esta realidade na sua comunicação.

Eu não estou dizendo, de forma alguma, que isto é não saber se comunicar, mas sim, que a comunicação parte de outra base, de outro ponto. O ponto onde o centro é a própria autoimagem idealizada, recheada de seus quereres passageiros e verdades momentâneas. A pessoa mira em algo ou alguém que preencha seu vazio gerado pelo distanciamento da realidade e de si mesma, assume a narrativa deste outro como verdade absoluta e compra essa verdade como sua. Pronto. De forma rápida e fácil se vê aceita, inserida e pertencente a um ideal, criado às pressas, volúvel e instável. 

Apesar de satisfeita, se mantém apta á trocar de galho tão logo o qual esteja apoiada não dê mais tantos likes e autoadmiração.  No primeiro parágrafo usei o termo replicante abduzido. Acho que agora ficou mais claro. E outra coisa, nada de errado com os quereres passageiros e verdades momentâneas, mas sim com sua supervalorização como base para toda narrativa pessoal em detrimento da realidade e do contexto.

Esse “modus operandi” age como um íman que atrai quem não lida bem com frustração e é uma cama macia pra deleite dos ressentidos.

adolescente

E qual a consequência: um grande déficit na autoridade comunicativa, pois as narrativas tem prioritariamente como base a auto imagem idealizada. São direcionadas por uma força um tanto narcísica. É algo como: “Vejo no espelho os meus similares, um pensa por todos e todos se expressam por um”.  É o conforto de ser validado e conduzido. Por isso o termo "boiada". Taí a fórmula para o desconforto psicológico frente aos diferentes. É como se estar em meio a fanáticas torcidas organizadas, mas que não representam apenas times de futebol, mas sim qualquer aspecto da vida social. Está criado o fanatismo por ideias, conceitos, atitudes ou conspirações. E o que acontece quando fanáticos organizados se encontram?

A consequência tá gritando na nossa cara: Uma sociedade abduzida, replicante e polarizada. Uma maioria que se apoia apenas em ideias construídas à sua imagem e semelhança, replica sua narrativa e condena os diferentes. Seguindo este roteiro, individualmente conseguem bater no peito, levantar a cabeça e dar a si mesmos uma grande importância.

Gosto de uma frase do Pondé em seu livro A Era do Ressentimento que diz assim: “A alienação da realidade em nome da nossa autoestima é puro ressentimento”... Perfeito!

Hoje, eu digo nos tempos de hoje, podemos contar nos dedos as cabeças que possuem tal contato com a realidade a ponto de poder construir uma narrativa quase completamente isenta. Afinal, há tempos os indivíduos crescem cada vez mais imersos na absorção acelerada do que não tem nada a ver com suas vidas, e perdem o interesse na manutenção de seus sensos e suas percepções. Essas percepções deixam de ser exercitadas, pois ninguém mais tem tempo pra isso. E como podemos então enxergar claramente a realidade?

A regra é manter a cabeça em alta velocidade e o corpo em grande performance. Sensações apuradas e sentimentos verdadeiros são jogados pra planos inferiores, pois dão muito trabalho, prejudicam a imagem, enfraquecem e fazem perder tempo. Desacelerar por um longo período é quase que proibido. Parar, respirar, contemplar e principalmente sentir, sim, digo sentir mais do que pensar, o próprio caminho e as próprias escolhas, só quando for para obedecer a um impulso de adequação momentâneo, sugerido por algum guru contemporâneo ou por um modismo “lacrando” nas redes sociais.

Certamente observar o contexto vivido foi substituído por julgar, cercar e se proteger. Já o termo "observar a si mesmo" tornou-se uma forma de medir o quanto é necessário criar uma vida plena para ser exibida nas redes sociais. 

Então como esperar que a comunicação seja baseada na realidade? Parece absurdo, mas estamos numa sociedade onde vivemos um nível de observação inversamente proporcional ao que estamos exigindo. Entendem porque mentiras são cada vez mais comuns e tão insistentemente defendidas?

Observem. Primeiro porque quem as implanta, conhece bem a frágil estrutura de contato com a realidade e aproveita-se disso, intencionalmente pra benefício próprio, contando com seus seguidores replicantes abduzidos para apoiá-lo incondicionalmente. Para a grande maioria, fora seus criadores, aquela narrativa inventada será verdadeira e portanto, passível de defesa.

 

Segundo, porque serve como prova de existência e importância social para um indivíduo com ego desestruturado. Como vimos antes e falamos exaustivamente, os indivíduos vem ao longo do tempo deixando de reconhecer seu contexto de vida e o substituem por causas rarefeitas em realidades distantes. Nada mais fácil do que abraçar uma causa que, de verdade, não tem a ver com sua realidade. Assim não comprometerá seu estado de desconexão e não exigirá que olhe para vida como ela é. Ao contrário, uma narrativa distanciada é fácil de sustentar. Porém é imprescindível que gere um lugar de pertencimento, um lugar onde o indivíduo possa existir socialmente e ser visto como alguém que possua uma posição. O ego estará alimentado.

A certeza sustentada e intensamente disseminada garantirá mais alguns dias, meses ou anos de uma falsa sensação de sentido, existência e pertencimento, por isso é agarrada com tanta força, ainda que, de forma completamente inconsciente, o afaste de sua verdade e de sua realidade, tanto mais o quanto dure.

halftone Crowd

Seja como for, o déficit de autoridade comunicativa nos rodeia mais do que nunca. Lembre que ele é consequência e não causa. Queria eu que fosse apenas um simples evento observado na adolescência tardia ou falta de confiança de alguns adultos com dificuldades. Longe disso.  Hoje um vírus chamado “irrealidade” é altamente contagioso e também responsável por mais uma pandemia. Apresenta diferentes variantes: Revoltados de nascença, Ressentidos profissionais e Defendidos de primeira linha. Disseminado pelo mundo, contamina indiscriminadamente, independente de raça, credo, cor ou situação financeira. Está presente em todas as casas em diferentes níveis. Existe o contato superficial que quase não apresenta sintomas, mas cuidado, pois também há uma carga viral intensa. Como então exigir que a comunicação venha de uma base mais sólida.

A boa notícia é que cada ser humano tem a vacina contra o vírus “irrealidade” em suas mãos. Tomá-la é uma questão de escolha e principalmente de coragem. Assim, além de diminuirmos a disseminação do déficit de autoridade comunicativa, cairemos sentados em narrativas mais realistas e aceitaremos melhor nossa própria condição de “SER” imperfeito.

Nos falamos... Um abraço,

Thito Bello

#eucantoavida

4vias

As 4 vias de conexão da imposição

Você já parou pra pensar que a imposição de regras e o dever de obediência estão presentes em praticamente todos os movimentos do ser humano? Afinal, a ideia da existência de regras não está apenas atrelada à vontade de controle, mas também é uma forma de manutenção do bom funcionamento tanto de coisas quanto de pessoas. É aí então que nos entregamos prazerosamente ao controle de algo ou alguém, excluindo de nossa realidade que estamos sendo comandados.

Antes de tudo, gostaria de dizer que sou uma pessoa que particularmente gosto de regras, não muitas, mas gosto. Segundo minha esposa, gosto mesmo é de controle. Mas o que importa é que pude observar esse tema de vários ângulos e esclarecer alguns pontos que podem ajudar. Este texto explica como uma regra imposta se comunica simultaneamente por quatro vias diferentes. Sendo duas com quem a impõe e duas com quem a recebe. Para chegar lá, vamos entender como funcionamos diante dos vários modelos de regramento a que estamos sujeitos.

Em primeira instância, somos radicalmente obedientes aos nossos equipamentos de uso cotidiano. Mesmo porque reclamar com eles das regras impostas de nada adianta. Apesar de já ter visto meu filho reclamando com o vídeo game, em pouco tempo ele aprendeu que caso não siga suas regras, não vai se dar bem. Assim como preciso seguir as regras de uso do computador utilizado e do aplicativo no qual agora digito, também é imprescindível que eu siga as regras de utilização de todo e qualquer objeto que tenha sido criado para uso do ser humano. De um aparador de unhas até um avião, tudo tem um modo certo de operação pra que funcione adequadamente. Caso eu não concorde, azar. Ou me dobro ou desisto de usar.

Mulheres Young & Devices

O que é possível se observar com isso? Que tudo bem sermos controlados no uso das coisas quando esta posição nos trouxer benefícios. Chamamos isso de treinamento das habilidades. Também é levado em conta, que se não obedecermos, não haverá ninguém sobrepujando nossa integridade ou nos penalizando em qualquer instância. A penalização, quando existir, virá da própria frustação, ou em não conseguir usar, ou em danificar o equipamento, mas ninguém precisa saber. Não é mesmo? Eles são como mestres de uma dimensão superior, pois nos doutrinam sem dar ordens e principalmente nos ensinam sem nada dizer. Sem julgamento, insistência ou truculência nos fazem aprender com o próprio erro. Se fossem vivos seriam “os evoluídos”. Você quer usar? Empenhe-se, treine bastante, até faça cursos, repita quanta vezes for necessário e aprenda. Do seu jeito e no seu tempo. Não é assim que aprendemos a dirigir? Pois bem, o que fazemos na verdade é seguir a risca as regras necessárias para o funcionamento adequado do automóvel.

 

Qualquer regra bem cumprida ou limite bem absorvido, nada mais é do que um exemplo de um bom treinamento mental e corporal de repetição. 

 

Saltando para o próximo nível, temos as regras e imposições coletivas para boa convivência entre as pessoas de uma mesma família, de um mesmo condomínio, de uma mesma cidade e assim por diante, cada qual com suas respectivas diretrizes, para tentar manter, pelo menos na teoria, o bom funcionamento geral e o bem estar individual. Assim como acontece com os objetos, a ideia dos responsáveis por implantar regras é vender uma sensação satisfatória a quem as abraça. Mas como as pessoas que impõe regras, em sua maioria, não são tão “evoluídas” quanto os objetos, precisam ensinar aos outros, de forma rigorosa, como cumpri-las imediatamente. 

 

Basta nascer, que as regras dão inicio e o treinamento começa. É desnecessário que eu diga aqui, sobre “o caminhão” de habilidades que uma criança é treinada a desenvolver, ou seja, um “caminhão” de regras e limites que são impostos desde o nascimento até a adolescência, para sua adequação ao ambiente e bom funcionamento do núcleo familiar. Da mesma forma, é desnecessário falarmos sobre a quantidade de regras e limites a que estamos sujeitos na vida adulta. Podem ser regras de comportamento moral ou social, no ambiente de trabalho ou familiar, regras de seu condomínio, de seu bairro, cidade, estado ou país, com diferenças gritantes no modo de aplicação e na intensidade da penalização em caso de não cumprimento.

Não estamos de forma alguma falando sobre certo ou errado. O que nos interessa é mostrar como absorvemos organicamente as regras e limites. Então vamos lá!

 

A ideia de liberdade se torna absurda quando olhamos por este ângulo. Somos tão acostumados a regras e preenchidos por limites que só notamos sua existência quando ultrapassam uma linha de incômodo estabelecida por nós mesmos, em diferentes níveis para cada aspecto. Sabemos que essa linha é tão individual quanto um cpf e é a partir dela que julgamos se algo é imposto ou não. Portanto, quanto mais alta esta linha, mais as regras e imposições serão completamente despercebidas no seu dia, ou por não serem consideradas uma imposição ou por, mesmo sendo impostas, preferirmos escondê-las em baixo do tapete. Fato é que, em sua origem, regras sempre surgem para evitar incômodos.

O lado que impõe regras vive uma dicotomia tanto quanto o lado que as deve cumprir. Vamos usar de exemplo um núcleo familiar, sabendo que esta ideia serve analogamente para núcleos maiores. Os aspectos que envolvem poder, regras e limites vistos numa relação entre familiares, também estão presentes no mundo corporativo e no mundo político. Então perceba que, ao longo do texto, onde estiver escrito criança ou adolescente, sinta-se a vontade para entender como “colaborador”, “assistente” ou qualquer um que, na prática do exercício de suas funções, deva obedecer regras. Já na nomenclatura para quem as impõe, fica mais simples, vamos chamá-lo de controlador, o que serve para qualquer instância.

Vamos agora detalhar as vias de conexão da imposição sentidas pelo lado de quem aplica as regras, ou seja, o controlador.

Impor uma regra é como impor um desafio, não só ao outro, mas também a si mesmo. Mostra ao controlador sua capacidade de planejar e implementar o que se pretende. No nosso exemplo familiar, como regra geral é intencionado o conforto psicológico trazido pela boa convivência entre todos e o bom funcionamento das práticas cotidianas. A cabeça da família vence seu desafio á medida em que as coisas caminham como esperado.

Pensamento do homem no sofá
reunião

A primeira via de conexão da imposição do controlador é imediatamente ligada ao prazer e ao conforto pessoal. Independentemente do motivo e nível disciplinar, o que se busca primeiramente é bem descrito pelas frases que toda criança já ouviu: - Obedeça. Não me traga problemas. Ou  – Eu já falei, estou mandando! Ou seja, a regra quer mostrar à criança “o seu devido lugar” e traz como primeira sensação o conforto gerado pela ideia de manutenção do controle, ao se evitar ao máximo qualquer possibilidade de incômodo a curto, médio ou longo prazo. Repito, pela ideia, já que sabemos que a intensão nem sempre bate com a realidade. Mas quando falamos em manutenção do controle, obrigatoriamente criamos dois pontos de oposição. O controlador e o controlado.

Quando se pretende mostrar ao outro um “devido lugar” é porque na verdade se pretende deixar claro o seu “próprio lugar”. O lugar de quem manda. Definir os papéis é importante no que diz respeito a qualquer tipo de imposição. Claro que, como sabemos, o ser humano rapidamente se enche de prazer no exercício do poder e costuma passar, na maioria das vezes, dos limites que ele mesmo criou. Embebido da própria vaidade, podem acontecer casos em que o controlador faça com que as regras abandonem o motivo pelos quais foram criadas, e passem a atendê-lo apenas como ferramenta de manutenção de seu poder. Ainda assim temos a primeira sensação como válida. Apesar de se conectar por outros meios, o prazer e o conforto pessoal permanecem vivos.

A segunda via de conexão que se monta com a imposição, como eu já disse, simultânea a primeira, é uma consequência do quanto a regra mostra-se realmente eficaz. No momento da imposição, já existe a ideia de se engrandecer como se fosse o criador de um grande e engenhoso plano para otimização do funcionamento do núcleo familiar, o qual que trará como retorno, ganhos na qualidade de vida e bem estar de todos. Então, se os limites e regras foram bem obedecidos, a sensação buscada foi alcançada.

Com isso se repete aos ventos o quanto seu feito foi adequado ao comportamento da criança e como será benéfico e de grande valia. Com certeza os amigos e vizinhos poderão aprender como se faz. O ego inflado recebe os aplausos de si mesmo, sendo parabenizado pela missão cumprida e pelo bem praticado a quem ainda não tem condições de se cuidar. Caso a resposta não seja a contendo, as regras serão enrijecidas até que proporcionem a sensação buscada.

 

O mesmo acontece no mundo corporativo. Impõem-se regras e orientações a respeito dos limites, com o objetivo de adequar o comportamento dos colaboradores ou da equipe comandada, ao perfil desejado pela empresa, para que as metas sejam batidas. Além disso, podemos ainda observar que o reconhecimento gera frutos adicionais, como uma promoção e uma maior condição de controle. Lembro que não estou falando sobre certo ou errado, mas sim das vias de conexão do indivíduo com os aspectos da imposição de regras. Por isso, é imprescindível que se mantenha a observação no risco de se confundir autoridade em pró do bem geral, com autoritarismo em pró da manutenção do próprio poder, pois ambos estão presentes na mesma via de conexão. Ambos os modos trazem orgulho e massageiam o ego do controlador.

Homem no terno

Vamos agora detalhar as vias de conexão da imposição sentidas pelo lado de quem se vê obrigado a obedecer.

Na primeira, transita o óbvio desagrado que toda imposição gera em qualquer ser humano medianamente sensato. A imposição liga o circuito de defesa da integridade e faz com que cresça imediatamente a vontade de fazer o contrário. Sempre dou este exemplo. É algo que costumava exercitar em meus workshops. Explico: Ao ver um aluno se dirigindo ao bebedouro eu dizia, num tom mais forte, como dando uma ordem:

- Fulano, eu gostaria que você bebesse água! Pode ser?

As reações eram diferentes fisicamente, mas sempre semelhantes no que diz respeito às sensações observadas. Passado o trote e as risadas, eu perguntava qual a sensação e, vejam, a resposta era sempre a mesma. Todos diziam que apesar da sede que os levava ao bebedouro, tiveram vontade de parar e desistir da água só pra não dar o braço a torcer e se dobrar a uma ordem. É o que acontece naturalmente com o corpo na defesa automática de sua integridade.

Isso mostra que uma regra imposta será mais bem absorvida, quanto mais longe estiver de ser reconhecida como imposição. Como é que é? Isto mesmo. Como está dito no início deste texto. Para que uma regra mostre total eficiência, as pessoas que devem cumpri-la precisam primeiramente perceber os benefícios recebidos. Quando a base da imposição se faz sobre um retorno palpável, cumprir a regra se torna uma moeda de troca e com o tempo, uma necessidade que traz vantagens pessoais, travestida de benefícios a algo maior. Digo travestida, não por que ache que não exista o benefício coletivo. Sim, com certeza existe, mas para uma grande parte, sinceramente falando, a narrativa em prol do coletivo se sustenta apenas enquanto a vantagem pessoal existir.

Mas considerando que o pensamento na coletividade seja tão real quanto o interesse pessoal, temos que o ato de controlar passa a ser observado apenas e tão somente como uma orientação.

Já a segunda via de conexão entre a imposição e quem deve obedecer, é um tanto mais complexa. Vamos imaginar o pior dos casos e perceber que mesmo assim há algo de positivo a ser considerado.

Refletindo acerca da imposição de uma regra que não seja bem aceita, imaginemos uma criança ou adolescente descontente por não concordar, e ressentido pela forma autoritária com a qual foi colocada. Normalmente, caso não consiga converter a situação na base da conversa, ou fica de forma involuntária dentro do universo pertinente à regra, reagindo com descontentamento e revolta a cada movimento limitado, ou de forma perturbada, tenta estar de fora burlando aspectos que puder, até, se tiver idade, sair de casa, o que seria como colocar o cargo à disposição no caso de um colaborador.

Mas mesmo com revolta ou regularmente planejando como burlar as regras, o que se percebe, é a contrapartida de que estando dentro das 4 linhas impostas pela regra, a criança estará como dizem hoje, “de boa”. Não nos importa aqui o quanto é certo ou errado, justo ou injusto, mas lembrando da frase que traz o termo – “...por a criança no seu devido lugar” – temos que seu significado gira em torno do fato de que a regra cerca, impõe limites, e mostra um determinado lugar de comportamento, que mesmo não sendo escolhido e aceito, é onde na maioria das vezes, pode-se transitar com segurança.

Mesmo que para muitos a guerra interna e a revolta predominem e nunca cessem, pois obedecer significa vender a alma, é sabido que, ao fazê-lo, também evitam problemas, ganham aliados e podem conquistar regalias. É aí que começa um jogo de xadrez, onde se tenta aparentar estar em apuros enquanto elabora e depois executa a grande jogada, ou seja, realizar o que se tem vontade mesmo sendo proibido.

Dá-se início a batalha por conquista territorial e a criança aprende rápido. Quanto mais aceitar a realidade, mais terá condições de criar manobras para burlá-la e realizar suas vontades não permitidas. Passa a ser vista como cumpridora de regas e recebe certas vantagens com isso. Ao contrário, quanto mais revolta e ressentimento demonstrados, mais as regras apertam. Faz parte do jogo familiar e permite que a realidade seja o tabuleiro. Sim, a realidade vivida sem máscaras, como se diz, nua e crua.

O que temos então? No final da linha, a condição vivida direciona a pessoa ao contato com suas reais forças e possibilidades. Ao confronto com sua realidade, e com as consequências de suas ações. Tornam-se adultos acostumados a tomar decisões. Adultos com mais iniciativa e mais condições de avaliação de contexto, já que isto é derivado do contato com a realidade do momento.

 

Sabendo avaliar o contexto, suas decisões acabam por beneficiar a coletividade. Tornam-se pessoas mais seguras, que se apoiam nas próprias forças e na própria opinião. Dificilmente serão replicadores abduzidos de ideias coletivas. Na verdade, pensam a partir da realidade do contexto vivido. Esta segurança estabelece à pessoa um lugar de pertencimento, sem a necessidade de se enganchar num pacote pronto recheado com alguma ideia coletiva.

Homem e colegas em reunião

Mas existe o outro lado. Percebemos que adultos que foram extensivamente mimados e pouco frustrados, tem menos poder de decisão e mais facilidade em desviar-se da realidade para não confrontar suas dificuldades. Lembrem dos “mestres” objetos do início deste artigo.

 

Quando as pessoas envolvidas, além da necessidade, passam a sentir prazer, a imposição deixa de existir como tal e a regra torna-se mais um desafio a ser exercitado. Nesta fase, em alguns casos, pode-se observar até mesmo um frenesi contagiante, que leva alguns obedientes a se tornarem controladores. Ficam tão envolvidos emocionalmente que passam a amplificar a regra, replicando-a abduzidamente e agindo de forma mais impositiva do que o controlador original. O pouco contato com o contexto da realidade dificulta a existência autônoma. Adultos assim buscam continuamente um conceito, uma forma pensamento coletiva, uma ideia a ser praticada, a qual possam se prender e por ela ser direcionado. Seu sentimento de existência e pertencimento fica atrelado a estar enganchado numa ideia maior.

Percebam que o cerne dessa narrativa pode sair do âmbito familiar e ser também aplicado ao universo corporativo ou político. Claro.

Vimos então que a imposição pode ser tanto aplicada quanto recebida de forma mais proveitosa. Já que, como vimos no início do texto, vivemos cercados de regras por todos os lados, podemos sempre escolher a forma mais adequada e positiva de estabelecer regras, e o jeito mais inteligente, confortável e proveitoso de viver com elas. De qualquer forma, aprenda à jogar xadrez!

Nos falamos... Um abraço,

Thito Bello

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